quarta-feira, 1 de janeiro de 2003
Crônica de um operário
poderia ir logo dizendo, pois lá fora a fila de desempregados(desesperados) estava clamando pela desistência dessa pessoa. Na fábrica, não líamos nos murais por onde circulam as comunicações internas, a palavra “trabalhador”, “funcionário” ou “empregado”. O qualificativo mais em voga era o de
“colaborador”. Não raro, líamos nesses murais:
“AVISO
Comunicamos aos nossos colaboradores que, em virtude dos sérios
problemas financeiros por quais passa a nossa empresa, o pagamento da 2ª
quinzena do mês X está previsto para ser efetuado no dia Y/ Z.
Agradecemos a compreensão,
A Direção”
Para nós, ficava mais do que óbvio que esse dia Y/Z seria uma data bem acima do que nossos credores poderiam suportar aguardar. Concordávamos numa coisa: quando uma empresa além de pagar pouco paga
com atraso, fica mais do que evidente que algo de ruim pode acontecer a qualquer tempo. (Ironicamente, anos depois aconteceu mesmo: essa empresa se quebrou e teve o patrimônio levado a leilão público, gerando uma receita imensamente inferior aos seus débitos todos).
Pior do que esses avisos de mural eram as chamadas para reunião coletiva entre a suposta direção e a gente (nunca o dono comparecia, só mandava o gerente ou similar), para explicar os mesmos problemas e nos pedir mais compreensão ainda. Nos vestiários e corredores não nos cansávamos de ouvir os mais revoltados proferindo descomposturas pesadíssimas contra os patrões, aliás, contra a empresa toda. Isso por sinal era a rotina: em todos os bastidores da gente era costume certo praguejarmos contra o incerto rumo da empresa, que a cada dia mais tirava o nosso ânimo de ali permanecer:
- Rapaz, eu não suporto mais Fulano de Tal (geralmente, um encarregado ou líder de produção). Eu tô com vontade de mandar ele pra p.q.p. Qualquer hora eu vou dar uma “pagação” em Sicrano também, que ele vai se arrepender de ter me chamado num canto!!! (sic)
Como a gente não conhecia lá a personalidade de um só patrão, acabávamos concordando quando ouvíamos alguns colegas mandando todos os “chefes” para aquele lugar... De fato, patrão é uma figura que estava em extinção, hoje acho que a coisa ainda é assim.O patrão não nos demitia.
Quem nos demitia só podia ser o encarregado, quando nos encaminhava para o “setor de pessoal”. Por exemplo, quando a empresa já não suportava um funcionário que vinha há algum tempo “ esculhambando” o serviço (sendo agressivo, faltando muito, IMPRODUTIVO – tudo de propósito para ser mesmo demitido e sair indenizado), o encarregado chamava ele a um canto e dizia-lhe enfim a oração esperada:
- Sicrano, compareça lá no setor de pessoal...(sic)
Eu também não sabia mesmo, como os demais colegas, defender os argumentos do patronato. A gente sempre achava que patrão tinha mais era que se danar e pronto! Afinal, num contexto como o nosso, em que vigorava a máxima do “muito trabalho pra pouco salário” só nos restava encher de injúrias a quem nos explorava massificadamente. Era o que eu pensava naquele tempo.
Ademais, um dia estive pensando, depois de um aula de filosofia: por que se premiava o tal do “operário padrão”? Quais seriam as “qualidades” ostentadas por esse felizardo do ano, no fundo talvez mais um “Pedro Pedreiro penseiro esperando...”? Operário padrão seria aquele que melhor desempenhava o seu exercício diário de alienação passiva? Seria aquele que melhor se conformava à situação, por mais adversa que esteja no país, já que tem bocas para dar de comer?
Será que Lula foi na sua época um operário padrão? Muito improvável... Ou será que, vendo por outro âgulo, Lula não teria sido o verdadeiro operário padrão de que o Brasil precisava?
Parafraseando Brecht, são perguntas de um operário que lê. Pelo menos um consolo eu tive nisso tudo: consegui ser demitido antes de a empresa falir. Isso quer dizer que recebi meus “tempos”!!!
* Este que eu classifiquei livremente de crônica foi um texto escrito por volta do ano de 2003.
Graças à colega Isis Moraes, foi publicado no suplemento cultural do jornal Tribuna Feirense, mas não encontrei registro da data correta. Quando encontrar, atualizarei.
sexta-feira, 26 de abril de 2002
O desaparecimento de Lessia
O nome dela eu nunca pesquisei ao certo, mas o que eu tenho lembrança era Lílian Lessia. Certamente, não é este o correto, é uma lembrança vaga de ter ouvido as pessoas falarem e algum registro no crachá.
A outra lembrança forte que havia ficado foi um poema escrito numa folha de caderno que foi destacada do espiral, para passar a rodar por uns anos em locais diferentes, até sumir ou ser queimado. Desse poema eu só me lembro do primeiro verso (o resto que se segue é uma reconstituição de um trecho):
Lessia partiu,
Partiu, não chorei, não sofri,
Partiu sem dizer a que veio, a que vai
A não ser arrazar
Um coração
Partiu, não chorei, mas senti
Uma perda bandeiriana daquilo que poderia ter sido
E que não foi
Lessia partiu,
Ela não tinha o padrão:
Podia não ter bunda, mas tinha peitos
Podia não ter conhecimento, mas tinha o sorriso
Podia não ser feliz, mas aparentava
Podia ter o rosto enorme, desproporcional
Mas o coração não guarda proporções...
Partiu, não chorei, só senti
Hoje me sobrou a lembrança mesquinha
E o arrependimento
O poema como está não tem mais valor. Perdeu o viço, o calor, a angústia do momento. Perdeu o calibre que tinha e só está aqui para ocupar um espaço, que agora carrega o peso ruim de uma reflexão.
Tudo isso se passou nos idos dos anos 90. Não vou dizer que ela tenha sumido. Mas que desapareceu, isso sim. Merecia uma volta. Merecia uma reconsideração. Lessia partiu como chegou: do nada e de repente. Tinha ficado em mim outrora a sua lembrança do ginasial, no Polivalente, que mesmo assim, não era nada familiar, porque nunca fomos da mesma turma (nem no sentido de classe escolar, nem no sentido de "tribo"). Nada mais. Só paixão encubada.
Aliás, de paixão encubada eu entendia muito, durante pelo menos um pedaço da década que durou minha adolescência (10-17 anos). Depois essas ilusões acabaram de vez, acho que foi muito bom para mim. E hoje eu fico achando graça (se não fosse trágico) dos otários que, com 9 anos, querem ser traficantes perigosos...
Naquela época, quando do acontecido, se tivesse que concluir esse episódio, eu talvez diria algo assim: "Mas tudo isso é pouco. Tudo isso prova o quanto nós somos frouxos de tomar uma decisão, quando mais se precisa dela".