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sábado, 11 de junho de 2016

Livro: O CUIDADO DO EMOCIONAL EM ENFERMAGEM (resenha)

SÁ, Ana Cristina de. O cuidado do emocional em enfermagem. São Paulo: Robe Editorial, 2001.

O cuidado do emocional em enfermagem é a primeira edição de um livro que se tornou best seller na área da atenção emocional em Saúde, tanto que atualmente já se encontra na 3ª edição, revista, ampliada e com novo título (O cuidado do emocional em saúde). A autora é Ana Cristina de Sá, enfermeira, psicóloga, com mestrado e doutorado pela USP (Enfermagem Fundamental e Enfermagem, respectivamente) e que atualmente leciona no Centro Universitário São Camilo. O livro possui 11 capítulos curtos (114 páginas ao todo), entremeados por narrativas de "casos" reais, mas que são significativamente ricas, contribuindo muito para a ampliação dos nossos horizontes em disciplinas como Bioética, Ética Profissional ou mesmo Psicologia. Sem dúvidas, esse viés teórico e problematizador da obra é algo que pode ser muito útil em nossa formação, e não somente para “complementações de aulas na área da saúde”.

Traçando um breve panorama da obra, observamos que os três primeiros capítulos nos chamam a atenção para habilidades nem sempre “estimuladas” nas unidades hospitalares, durante o cuidado com o outro: (1) a percepção dos mínimos detalhes à nossa volta (o imperceptível); (2) a capacidade de ouvir e (3) a capacidade de apurarmos nosso olhar para interpretar o que está sendo "dito" sem palavras. Fica patente nos relatos que se seguem o quanto podemos fazer mais em prol da dignidade ou do bem estar de nossos pacientes. Isso inclui desde a percepção de que um bom banho ("Seu Pedro", p. 12) pode fazer um doente se sentir “bonito para a sua nêga", ou mesmo sentir o quanto pode ser confortante para uma criança em estado terminal rever um ente querido (Waldemir, 10 anos e a sua querida avó). Por outro lado, a história de "Dona Eunice" (p.23), que lutou por três intensos anos contra um câncer, demonstra o quão é importante o ato de ouvir, pura e simplesmente ouvir, sem dizer coisa alguma em troca. A mesma acuidade do profissional para ouvir deve ser exercitada para o olhar, "aliado à expressão facial, a um gesto ou à expressão corporal" (p.27). Muitas vezes, quando atingimos um patamar de "interação efetiva" com o paciente (p. 35), conseguimos decifrar o seu mutismo ou o seu semblante de tristeza, detalhes que podem dar pistas de que algo pode estar sendo conduzido de maneira errada na terapêutica adotada pela equipe de profissionais (como no caso do "Sr. Desconhecido do leito 29").

Os três capítulos que se seguem (IV, V e VI) refletem sobre: a chegada da morte e a necessidade de "encará-la", sem meios termos; a questão dos nossos medos ao lidarmos com seres humanos e os "agentes estressores" que estão implicados nesse relacionamento; a questão da "falta de empatia" entre paciente e enfermeiro, que pode levar o profissional a revelar seus mais recônditos complexos inferiores de "miséria humana"; e mesmo sobre a questão do exercício da criatividade no ambiente de trabalho do profissional. Por meio de relatos cada vez mais tocantes, do ponto de vista da condição humana, a autora vai resgatando assuntos aos quais muitas vezes não damos a devida relevância. Por exemplo, em 20 anos de trabalho, ela se dá conta de que um dos maiores temores dos pacientes críticos é o de morrer sozinho: esse paciente não se torna "poliqueixoso" por vontade de nos incomodar, mas pela sua condição de fragilidade (a jovem terminal de 16 anos). Em outro caso, Ana Cristina relata um atrito entre ela, então recém-formada, e uma enfermeira experiente ("ter sido humilhada por alguém que é seu par" doeu-lhe muito), mas que acabou em grande amizade. Em outro relato, a autora descreve um pouco as adversidades enfrentadas no seu primeiro estágio de Psiquiatria e, por fim, sobre o fato de que muitas vezes não valorizamos a empatia (isto é, a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro), sem a qual o nosso trabalho como enfermeiros fica seriamente comprometido.

No capítulo VII, Sá relata o quão maravilhoso pode ser o toque, enquanto método terapêutico, momento em que há uma troca de energia profissional x paciente, o que potencializa o efeito analgésico da terapêutica. O oitavo capítulo nos conscientiza de que a solidão é o pior remédio para os nossos males, pois é com ajuda dos outros que podemos construir uma vida melhor. Na sequência (cap.9), Cristina de Sá discorre sobre a importância da escolha da carreira certa, que, de fato, é aquela que nos proporcione prazer e que a cada dia exista o interesse de aperfeiçoar-se, sempre com humildade e o humanismo. O décimo capítulo nos causa admiração ao nos depararmos com a atitude da autora ao enfrentar o caso do “Seu Paulino”. O texto parece querer extrair de nós uma resposta a esta pergunta: “até que ponto devemos seguir à risca o Código de Ética de Enfermagem”? Aqui, somos capazes de recriar a situação em nossa própria memória e imaginar o tamanho da felicidade de Seu Paulino, quando saciou pela última vez a sua vontade de tomar a tal “branquinha” – e também a nossa própria satisfação, ao percebermos que, nesse caso, o ato de “quebrar as regras” se fez plenamente necessário.

Outras histórias se seguem, retratando, em linhas gerais, o quanto o respeito aos direitos “emocionais” dos usuários da saúde é uma tendência bem vinda em nossa sociedade. Nas entrelinhas – e mesmo fora delas – fica evidente o quanto precisamos assegurar aos cidadãos um atendimento verdadeiramente acolhedor e livre de qualquer discriminação/preconceito. O capítulo que encerra estes relatos de vivências magníficas, (que, a esta altura, tanto já acrescentaram ao nosso aprendizado) traz a história comovente da própria autora, que aqui passa a ser personagem, narrando em primeira pessoa aquilo que descobre “do outro lado”. Assim, ao descobrir que tinha uma neoplasia maligna, ela passa a enfrentar o serviço de saúde como paciente (e não como profissional). Isso talvez nos faça imaginar que Sá desejasse ser leiga no assunto, naquele momento, no entanto, vê-se que a sua história com o câncer despertou-lhe para sentir muitos dos sentimentos que cercam as pessoas acometidas por essa doença. Tanto passou por situações constrangedoras, como também pôde encontrar pessoas que demonstraram ser fiéis amigas, solidárias e envolvidas com a causa e com o amor ao próximo, tanto do ponto de vista profissional, quanto humanístico. A sua vontade de vencer e a sua fé foram seus pilares durante todo o processo de recuperação e superação, essa mesma vontade e fé que antes foram usadas para ajudar todos os seus clientes.

Expondo seus objetivos ao final da obra, a autora diz que - entre outros estímulos - o que a motivou a escrever tais relatos foi a vontade de trazer experiências vividas e que não são contadas em livros científicos. De fato, concordamos com isso. Ao principiar a leitura, não demora muito para constatarmos que o livro O cuidado do emocional em enfermagem é, numa palavra, cativante. E engana-se quem pensa tratar-se de uma obra puramente voltada para profissionais da saúde. Afinal, trata-se de uma leitura – inevitavelmente prazerosa e reflexiva – na qual percebemos que uma das felizes conquistas da autora foi justamente a sua capacidade de atingir um público que extrapola o âmbito dos profissionais e das pessoas do seu/nosso “meio” (o da área da saúde, o da academia ou o das unidades hospitalares). O livro, por outro lado, nos remete a questionamentos edificantes e perenes, tais como: "Eu - enfermeiro ou médico - tenho feito mesmo tudo o que pode ser feito para amenizar as dores das pessoas?"; "Isso que nos acostumamos a chamar de 'cuidado do emocional' realmente tem se prestado a sê-lo?" ou mesmo "O que nós, profissionais, podemos considerar como sendo o verdadeiro cuidado do emocional?" Estas são apenas algumas das perspectivas de reflexão que a obra trás à tona, sempre com uma linguagem abrangente, no sentido de não se preocupar com o jargão tecnicista, ao ponto de pequenos erros de revisão serem plenamente perdoados (a exemplo da grafia errada da palavra "chinêz" [p. 89] e de uma frase atribuída equivocadamente ao escritor Guimarães Rosa [p. 84]: "o sertanejo é, antes de tudo, um forte"], quando se sabe que é atribuída ao escritor Euclides da Cunha, na obra Os sertões, de 1902).

Concluindo, podemos afirmar que O cuidado do emocional em enfermagem é uma obra carregada de humanidade, de valores advindos da experiência clínica e de tantos outros sentimentos nobres, que poderiam ser resumidos no amor pelo próximo e no amor pelo ofício do cuidar - tudo isso é de interesse universal, e não de nichos. Através do relato de suas experiências profissionais desde muito jovem, lidando com pacientes em situações problemáticas de saúde (portanto, lidando com questões que envolvem a morte e o morrer, o sofrimento humano, as dificuldades de relacionamento interpessoal, entre outras), nós, leitores em geral, somos instigados a medir o verdadeiro valor da afetividade, do carinho, da espiritualidade (do respeito a esta) e da solidariedade (algo que não tem relação com o "ser bonzinho").

Autores: ALBERTO VICENTE SILVA E DANIELA PASSOS RIBEIRO (UEFS - UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA, janeiro de 2013). Este é um trabalho acadêmico. Se você for utilizar, cite a fonte.



sábado, 23 de março de 2013

Resumo crítico de textos de Roberto da Matta e José Carlos Rodrigues

Resumo crítico dos textos:
DA MATTA, Roberto. Você tem cultura? Suplemento Cultural do Jornal da Embratel, Ed. Especial, setembro, 1981.
RODRIGUES, José Carlos. Uma pergunta, muitas respostas. In
Assistência à mulher em processo de abortamento provocado: discurso de profissionais de enfermagem.
GESTEIRA, S M A; FREIRE, N M; OLIVEIRA, E M. Assistência à mulher em processo de abortamento provocado: discurso de profissionais de enfermagem. Acta paul. Enferm., São Paulo, v. 21, n.3, p. 449-453, 2008.
Título, resumo, introdução, fundamentação teórica/revisão da literatura, metodologia.  

O título desde artigo, de fato, expressa o ponto central da pesquisa proposta, que é relatar o discurso dos profissionais de enfermagem frente às situações de abortamento (o problema), tomando como “cenário” de análise a assistência prestada às mulheres em processo de abortamento provocado numa maternidade pública de Salvador (contexto). Parte-se, portanto, do pressuposto de que é extremamente necessária a observação “da problemática de saúde que envolve a mulher em processo de abortamento provocado, e visando a mudanças na assistência a essas mulheres no sentido da humanização” (objetivo e justificativa social, p. 450). O resumo é bastante sucinto, mas cumpre o seu papel de incorporar todos os pontos-chave da pesquisa exposta. Na introdução, as autoras traçam um panorama acerca do processo de abortamento em vários continentes, bem como a política de abortamento dos mesmos (a clandestinidade, as taxas de mortalidade materna decorrente de abortamentos, tipos de procedimentos abortivos mais adotados, entre outros aspectos). Nessa dialética histórica, citam o Brasil e abordam algumas leis pertinentes ao assunto no país, a exemplo do conjunto de leis que regem as punições para a interrupção voluntária da gravidez e o Projeto de Lei que visa à descriminalização e a legalização do abortamento, com garantia do SUS (fundamentação teórica/revisão da literatura). Tudo isso tem o intuito de, conforme o dizer das próprias pesquisadoras, “de responder à seguinte questão: como a equipe de enfermagem percebe a assistência prestada às mulheres em processo de aborto provocado?” (p. 450).
A pesquisa apresentada neste artigo é essencialmente de abordagem qualitativa (metodologia), para a qual se escolheu o estudo de caso detalhado, no qual fosse possível ouvir as falas dos sujeitos da pesquisa e compreender, por fim, a experiência dos enfermeiros que vivenciam tal situação à luz dos seus próprios olhares. Como dissemos, o estudo foi realizado em uma maternidade da rede pública estadual na cidade de Salvador, sendo devidamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo.Ainda sobre essa metodologia, é dito que a pesquisa foi feita por meio de depoimentos gravados e escritos de cinco enfermeiras e quatro auxiliares de enfermagem e foi garantido total anonimato para as contribuintes da coleta de dados. Os resultados obtidos foram suficientes para nos mostrar a experiência das profissionais de enfermagem frente à situação de aborto, e alcançou os objetivos da pesquisa que era apenas verificar o discurso da classe da enfermagem, e um dos discursos mais pertinentes dos depoimentos é de que elas vêem o aborto como crime, e que as mesmas discriminam as mulheres que chegam à Maternidade em estado de abortamento. 

Conclusão/considerações finais: as autoras chegaram à conclusão de que na percepção das profissionais de enfermagem, o aborto provocado é crime perante a lei jurídica, religiosa e mundana. Observaram também que o fato dessas mulheres serem discriminadas pelas profissionais distancia o principio da assistência humanizada, sem qualquer tipo de discriminação. E, a partir disso, elas afirmam que este problema sugere a necessidade de implantação de políticas públicas que assistam à mulher e permita um processo dialógico entre as pacientes e as (os) enfermeiras (os). A conclusão, portanto, cumpre a sua principal função (retomar os resultados obtidos na pesquisa e fornecer alternativas para resolução da problemática), destacando-se a necessidade de mudanças na atual forma como profissionais e pacientes abordam a questão do abortamento no Brasil.
Por fim, as referências são bastante pertinentes, contextualizadas e fornecem a fundamentação requerida para a abordagem pretendida. 

Autor: Alberto Vicente Silva (Universidade Estadual de Feira de Santana). Não é permitido cópia sem citação da fonte.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Enfermagem contemporânea: avanços e retrocessos

O presente trabalho tem como objetivo abordar alguns dos aspectos (avanços ou retrocessos) que circundam o exercício profissional da enfermagem na contemporaneidade. Nossa intenção não será a de buscar aprofundamento na questão, mas a de apenas fornecer informações para que tanto os novos enfermeiros quanto os profissionais de enfermagem mais experientes tomem cada vez mais consciência de seu verdadeiro papel social e individual.

Começaremos nosso breve informativo lembrando que, sem dúvida, uma das conquistas recentes e mais satisfatórias para a categoria dos enfermeiros foi o reconhecimento dado pela ANVISA que forneceu autonomia para prescrever medicamentos a pacientes, algo que já estava demarcado na Lei nº 7498/86, que delegava ao enfermeiro a “prescrição de medicamentos estabelecidos em programas de saúde pública e em rotina aprovada pela instituição de saúde”. Assim, ficou estabelecido que a prescrição de remédios fosse uma atribuição de todo e qualquer profissional regularmente habilitado, e não apenas cabível aos médicos o direito de exercê-la. A Resolução da ANVISA estabeleceu tão somente o que a legislação federal supracitada já previa, desde que o enfermeiro leve em conta a relação de medicamentos certos e previstos no programa ou rotina da instituição. E mais: os gestores de qualquer estabelecimento de saúde ficam proibidos de negarem-se a fornecer o medicamento prescrito, especialmente os medicamentos antimicrobianos ( Resolução 20/2011).

Uma das conquistas da Enfermagem é perceptível no âmbito da própria categoria, enquanto organismo institucionalizado. No dia 14 de março de 2012, acontecerá a  eleição do Plenário do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) para a gestão 2012-2015. Isso significa mais um momento democrático no âmbito das instâncias que ajudam a defender os direitos dos profissionais da enfermagem, bem como a julgar os processos que lhe competem sobre o exercício da profissão. O mandado dos novos conselheiros se inicia em 23 de abril de 2012 e se encerra em 22 de abril de 2015 e todos os profissionais da enfermagem têm direito a voto, desde que acatem o exposto na Resolução nº 355/2009 do órgão.

Outro aspecto positivo e ao mesmo tempo desafiador para a enfermagem contemporânea é o problematizado por autores como BAGGIO (2010) e diz respeito ao cuidado e o uso das novas Tecnologias da Informação (TIs). Segundo ela,  utilização dos “sistemas de informação para o cuidado em saúde, têm se tornado um processo em permanente evolução” e novas experiências têm surgido, tais como “os serviços de saúde remotos”  e a "saúde on-line” (p. 379). Trata-se de uma problemática que abrirá espaço para ampla discussão, tanto no meio profissional, quanto na própria sociedade, visto que representa parte dos novos desafios a serem assimilados pela categoria, que irá inclusive exigir das instituições formadoras (universidades, centros de pesquisa, etc) novos olhares em médio e longo prazo, principalmente no que tiver relação com os benefícios (a busca de respostas rápidas a problemas antes tratados com muita morosidade, por exemplo)  e prejuízos (os conflitos, a substituição do trato humano pela frieza dos procedimentos tecnicizantes, por exemplo) da incorporação das novas tecnologias ao cuidado enfermeiro-paciente.

Neste retrospecto, não poderíamos deixar de tratar sobre as difíceis condições de trabalho na enfermagem contemporânea, que estão longe de sem vistas como adequadas e animadoras. Não são raros os casos que acompanhamos na imprensa sobre lutas da categoria por avanços salariais e melhores condições de exercício da profissão. Por exemplo, no mês de fevereiro de 2012, no Estado de Alagoas, os enfermeiros do Programa Saúde da Família (PSF) de 40 municípios estiveram lutando por melhores condições de trabalho e reajuste salarial. Segundo dados do Sindicato dos Enfermeiros de Alagoas, a defasagem salarial se prolonga por oito anos, sem esperança de recomposição dos prejuízos. O dirigente sindical da categoria no Estado chegou ao ponto de afirmar que desde setembro de 2011 as promessas de intermediação junto ao Governo Federal não estão sendo cumpridas, sendo que a principal luta da categoria é pela implantação de um piso salarial para o PSF no Estado. “Precisamos de um tratamento digno para cumprir as quarenta horas semanais”, concluiu o sindicalista Wellington Monteiro, em entrevista no dia 14 de fevereiro de 2012.

Lembremos também do movimento sindical dos Profissionais de Enfermagem de Rondonópolis, no Mato Grosso. Lá, os profissionais de enfermagem do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) ficaram à margem de um projeto de lei aprovado pelos vereadores, que trata de mudanças no Samu. O PL prevê aumento do número de médicos no serviço,  melhoria nas escalas dos plantões, reajuste dos valores pagos pelos plantões e abonos  proporcionais, mas a categoria dos enfermeiros simplesmente não está sendo contemplada.

Além disso, em Rondonópolis, os enfermeiros e técnicos sequer tiveram até agora garantia de melhorias salariais, conforme depuseram representantes sindicais. E não se trata de uma classe minoritária no município, pois ela corresponde à maior parte dos profissionais do SAMU.
Nessa luta nacional, nada mais justo do que a intermediação do Cofen. Recentemente (16/02), aconteceu uma audiência no Palácio do Planalto com Assessor Especial da Secretaria Geral da Presidência da República, José Lopez Feijó, que contou com a presença de entidades representativas da Enfermagem Brasileira.  O encontro definiu os detalhes para que seja possível um futuro encontro com o Ministro da Saúde, Alexandre Padilha, a fim de tratar novamente sobre as reivindicações dos profissionais de Enfermagem. Na pauta, foram discutidos assuntos vitais, como: a regulamentação da jornada de trabalho em 30 horas para os profissionais de Enfermagem, a questão do direito ao duplo vínculo (dupla jornada), criticado por muitas instituições e os pontos polêmicos contidos no Ato Médico, já aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.

Quanto à questão da redução da jornada para 30 horas, isso irá representar um avanço muito significativo para nós, enfermeiros, contribuindo inclusive para melhorias na saúde laboral e na própria qualidade de vida. Trata-se, inclusive, de um direito que a própria Organização Internacional do Trabalho (OIT) prevê como essencial.

Embora alvo de críticas, tanto por parte dos próprios profissionais quanto por parte de instituições empregatícias, o exercício do duplo vínculo é um preceito garantido constitucionalmente. Assim, os representantes da Enfermagem (ABen, Cofen) são definitivamente contra quaisquer pressões oriundas de atitudes claramente inconstitucionais. 
Sobre o polêmico Ato Médico, já aprovado pela CCJ, vale ressaltar que  ele estabelece, entre outros ponto, como competência exclusiva dos médicos a formulação de diagnóstico nosológico (relacionado a doenças). Ou seja, os médicos terão exclusividade na emissão dos diagnósticos de anatomia patológica e de citopatologia, que visam identificar doenças pelo estudo de parte de órgão ou tecido, algo que poderá afetar diretamente os biomédicos e farmacêuticos. Outro aspecto da lei diz respeito à ocupação dos cargos de chefia, pois esses seriam permitidos apenas para médicos, excluindo-se tanto os enfermeiros, quanto outros profissionais (Psicólogos, Odontólogos, Fonoaudiólogos, Biomédicos, etc), os quais poderiam ocupar apenas cargos da direção administrativa dos serviços. (Correio da Bahia, 09/02/2012).
Para finalizar, você pensa em exercer a profissão de enfermeiro fora do país? Se sim, saiba que não são em todos os países do exterior que a situação da categoria se encontra confortável. Em uma aldeia portuguesa chamada Boticas, por exemplo, recentemente um casal se viu forçado a sair do país para poder conseguir emprego. Segundo um jornal português, ambos são enfermeiros, mas devido à falta de emprego em Portugal, vão emigrar para a Bélgica, onde conseguiram ser colocados no mesmo hospital. Mas a situação é bem pior, segundo um dos representantes da ordem dos Enfermeiros portuguesa: mais de 1,7 mil enfermeiros emigraram em 2011 e em 2012 até janeiro já foram registradas 200 outras emigrações.

Conforme ficou dito ao princípio, o que expusemos neste breve relato teve a intenção de servir para que nós, enfermeiros (tanto os já formados quantos os que estão em formação), cada vez mais tomemos consciência de que o horizonte profissional divisado ainda está longe de ser o ideal. É necessário dizer também que, embora o contexto brasileiro ainda se apresente carregado de dificuldades na profissão, isso não significa que a situação em outros países do mundo esteja necessariamente melhor, apesar de consideráveis diferenças na valorização da profissão. No mais, que possamos demarcar o nosso espaço atuando cada vez mais de maneira plena, ética, competente e fazendo a nossa diferença, seja nos grandes estabelecimentos ou nos que hoje podem até ser considerados “esquecidos” ou remotos.



Autor: Alberto Vicente Silva (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA)

Referencias

A tribuna – Mato Grosso. Enfermeiros também reclamam dos salários. Disponível em <http://www.atribunamt.com.br/?p=97589>. Acesso em 25 fevereiro 2012.
Alagoas 24 horas. Enfermeiros do PSF podem deflagrar greve. Disponível em  <http://www.alagoas24horas.com.br/conteudo/?vCod=114962>. Acesso em 25 fevereiro 2012.
Sol. Casal de enfermeiros vai sair de Portugal devido à falta de emprego. Disponível em <http://sol.sapo.pt/inicio/Sociedade/Interior. aspx?>>>>>>>content_id=40960>. Acesso em 08 fevereiro 2012
Sic Notícias. Casal de enfermeiros vai sair de Portugal devido à falta de emprego. Disponível em <http://sicnoticias.sapo.pt/economia/article1355027.ece>. Acesso em 08 fevereiro de 2012.
BAGGIO, Maria Aparecida, ERDMANN, Alacoque Lorenzini, DAL SASSO, Grace Teresinha Marcon. Cuidado Humano e Tecnologia na Enfermagem Contemporânea. Texto contexto. Enfermagem, vol. 19, nº 2. Florianópolis, Apr./June 2010. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/tce/v19n2/21.pdf>. Acesso em 25 fevereiro de 2012.
Blog ENFERMAGEM OBSTÉTRICA. Enfermagem obstétrica. Disponível em <http://mabl-enfermagemobstetrica.blogspot.com>. Acesso em 25 fevereiro 2012.
Jus Brasil. Lei 7498/86 | Lei no 7.498, de 25 de junho de 1986. Dispõe sobre a regulamentação do exercício da enfermagem, e dá outras providências. Disponível em <http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/128195/lei-7498-86>. Acesso em 25 fevereiro 2012.
Correio da Bahia. Ato Médico é aprovado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Disponível em http://www.correio24horas.com.br/noticias/detalhes/detalhes-1/artigo/ato-medico-e-aprovado-na-comissao-de-constituicao-e-justica-do-senado/. Acesso em 25 fevereiro 2012.

domingo, 18 de dezembro de 2011

O nascimento do hospital - um fichamento

Fichamento do texto O nascimento do hospital.
In.: FOUCAULT, M., 1984b. Microfísica do Poder. Obtido pelo site: http://vsites.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/microfisica.pdf (acesso em 10/10/2011)

O nascimento do hospital é um dos capítulos integrantes do livro Microfísica do Poder, de Michel Foucault, no qual estão reunidas algumas obras do filósofo, muitas das quais de muita valia para os estudos da área das Ciências da Saúde. O texto é resultante de uma conferência do filósofo e se propõe, no dizer do próprio autor, a tratar do “aparecimento do hospital na terapêutica médica”. Em princípio, é dito que a concepção de um hospital como instrumento terapêutico é algo recente, datando do final do século XVIII, com a ocorrência de algumas viagens de investigação, principalmente as empreendidas por Howard e Tenon. Tais viagens, embora não tenham se prestado a detalhar as condições hospitalares gerais da Europa, pode-se dizer que serviram como base para a reformulação/reconstrução de hospitais (agora vistos como “fatos médico-hospitalares”), a partir do acesso a dados quantitativos (número de doentes, leitos, área, etc) e mesmo a formulação de causalidades para algumas enfermidades (condições de vida e localização dos internos, localização funcional de elementos da estrutura hospitalar, por exemplo).

Nessa época, germina a ideia de que um hospital podia ser considerado como “maquina de curar”, embora não fizessem o prometido – curar – a contento. Foucault, por sua vez, objeta quanto a esta hipótese, dizendo, entre outras coisas, que nessa época a medicina não era tida ainda como uma “pratica hospitalar”, mas sim “uma instituição de assistência aos pobres”. Daí, autor chegar a dizer que até então, o hospital acolhia o pobre que estava morrendo e não o doente carente de cura (“morredouro”). Para exemplificar o que diz anteriormente, Foucault recorre ao exemplo do exército militar e marítimo, onde se processou a reorganização hospitalar destinada aos soldados através da disciplina, que por sua vez teve outro paradigma na constituição das relações escolares (a reorganização dos espaços, o ensino coletivo, o uso da disciplina da “análise do espaço” e a classificação dos corpos).

A disciplina, tomada aqui pelo exemplo do militarismo e do ambiente escolar, acaba, segundo Foucault a exercer um papel preponderante na constituição daquilo que integra o ambiente hospitalar e a própria medicina.
Se antes do século XVIII  a medicina era individualista, a partir de agora, a medicina passaria a ser “hospitalar” e o hospital passaria a ser “medicalizado”. Foucault, explica, entre outros aspectos, que isso aconteceu por conta de fatores como:
- a busca pela “anulação dos efeitos negativos do hospital” (naquilo que ele tinha de contaminável ou de servir de refúgio a práticas ilícitas cometidas por parte de traficantes hospitalizados, por exemplo);
- o fato de que a disciplina pode exercer controle no desenvolvimento de uma ação (por exemplo, a fiscalização de determinados processos para um melhor aproveitamento final);
- o fato de que a disciplina “é uma técnica que implica vigilância perpétua e constante dos indivíduos” (daí surgirem os sistemas de inspeção, vistorias, revistas, desfiles, oriundos do militarismo);
- o fato de que a disciplina exigir “registro contínuo”: isso explica a característica essencial dos exames, de ser o produto arraigado do senso de “vigilância permanente, classificatória”.

Portanto, sem a inserção da técnica disciplinar no espaço do hospital, seria inviável se promover a sua medicalização (hospital disciplinado). Nesse processo chamado de “inteligibilidade da doença”, Foucault exemplifica citando o caso da botânica, com a sua perspectiva classificatória (espécies, características, desenvolvimento e curso de vida das plantas).

Portanto, para Foucault, o “ajuste desses dois processos, deslocamento da intervenção médica e disciplinarização do espaço hospitalar, que está na origem do hospital médico”, tal como pode ser entendido ainda hoje. A disciplinarização do espaço hospitalar levará cada vez mais à individualização e a distribuição dos doentes “em uma espaço onde possam ser vigiados”, isto é, monitorados. Partindo desse ponto de vista, o filósofo tece algumas conclusões, conforme se seguem:

 O hospital não pode ser concebido sem se levar em conta o seu espaço físico (suas condições de localização, sua assepsia, mesmo em quartos coletivos, já que sua arquitetura é “instrumento de cura”);

 O sistema de poder no interior do hospital foi sensivelmente modificado após o século XVII. Saem de cena os religiosos gestores para dar lugar aos médicos, que passam a cuidar do hospital tanto do ponto de vista médico quanto administrativo. Assim, o médico passa a ser figura presente e constante no hospital, saindo de cena a figura do “médico de consulta privada”;

 O hospital se torna lugar de registro permanente. A produtividade documental possibilita o “acúmulo e a formação do saber”. O conhecimento enciclopédico da academia (sem a prática) dá lugar ao registro hospitalar e isso contribui para a formação plena dos profissionais de saúde.

Assim, Foucault conclui afirmando que as duas medicinas – a do individuo e a da população – serão redistribuídas no decorrer dos séculos e chegaria à configuração patente do século XX e, por que não, do presente século, o XXI.

Autor: Alberto Vicente Silva (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA). Proibido a cópia sem a devida citação.

sexta-feira, 2 de junho de 2006

O discurso “intelectuário” de Antonio Biá - filme Narradores de Javé

*Intertextualidade e interdiscursividade parecem noções similares, à primeira vista, mas não o são, na medida em que a primeira trabalha com vozes do sujeito discursivo que são visíveis na superfície textual, enquanto que o interdiscurso domina regiões em que essas vozes não são explicitadas (Orlandi, 2005). Para os propósitos deste breve trabalho, caberia- nos pensar que o que sucede nas falas do protagonista Antonio Biá são marcas de intertextualidade, embora não possamos nos afastar de todo da hipótese de ali haverem marcas de interdiscursividade, como veremos. Trata-se de conceitos que, de maneira geral, se caracterizam pelo teor de recorrência discursiva, entendida como “um saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob forma do pré-construido, o já dito, que está na base do dizível, sustentandocada tomada de palavra” (idem, p.31). intertextualidade e interdiscursividade não podem ser confundidas com simples imitação, ou como algo que acontece por falta de imaginação do sujeito discursivo, mas sim retratam a capacidade desse sujeito de se apropriar do que já foi dito transmutando- se em algo propicio às novas condições de produção , no momento da enunciação.
Pêcheux (1969), ao falar dessas condições de produção, estabeleceu uma definição empírica, ao afirmar que a noção de condição de producao (CP) estaria diretamente realcionada à existência de “protagonistas do discurso”. Estes representariam “ ‘lugares’ determinados na estrutura de uma formação sicial, lugares cujo feixe de traços objetivos característicos pode ser descrito pela sociologia. Assim, no interior de uma instituição escolar há o ‘lugar’ do diretor, do professor, do aluno, cada um marcado por propriedades diferenciais” (Apud Brandão, 1991). Tomando essa formulação para o caso do filme analisado, poderíamos falar que o “lugar” do nosso “protagonista do discurso” – Antonio Biá – é o de quem fala de uma posição supostamente diferenciada, uma vez que ele se sobressai em meio àquela população que não era dotada de um certo “saber discursivo” que não deixa de ser inovador.
Courtine (1981), ainda segundo Helena N. Brandão (id.), propõe uma definição para as CP relativamente mais objetiva, ao ligar tal noção à idéia das “simples circunstâncias” (p.37). Nessas circunstâncias, portanto, “interagem os ‘sujeitos do discurso’, que passam a constituir a fonte das relações discursivas” (id, ibidem); assim, a noção de CP estaria “alinhada à analise histórica das contradições ideológicas presentes na materialidade dos discursos” (ibid., p. 38). Basicamente, é o que diz Orlandi (2005), ao enfatizar que as CP estariam englobando “ os sujeitos e a situação” e, dessa forma, “podemos considerar as CP em sentido estrito e temos as circunstancias da enunciação : é o contexto imediato. E se as considerarmos em sentido amplo, as CP incluem o contexto sócio-historico, ideológico.”(p.30). Caberia aqui uma reflexão útil para este trabalho, que se refere à maneira como se dão as referencias discursivas em nível da situação de enunciação.
Maingueneau (1997), a este respeito, levanta um conceito importante : a noção de dêixis.Esta é definida como um “conjunto de referências articuladas pelo triangulo EU- TU- AQUI- AGORA” (P.41). A mesma analista identifica duas espécies de dêixis: a discursiva e a fundadora. A primeira compreende três instâncias, a saber, o locutor (EU) e destinatário(TU) discursivos, a cronografia (AGORA) e a topografia (AQUI); já a dêixis fundadora pelas “situação(ões) de enunciação(ões) anterior(es) que a dêixis atual utiliza para a repetição e da qual retira boa parte de sua legitimidade” ( p.42), e suas instância são: a locução fundadora, a cronografia e topografia fundadoras. (Orlandi [ano?] prefere a terminologia “discurso fundador” em vez de “dêixis fundadora”). As duas dêixis constituem formas de acesso à “cenografia” de determinada formação discursiva.

Antonio Biá: discurso “intelectuário” enquanto gênero? Marcas dêiticas, intertextuais e interdiscursivas presentes nesse discurso.

Antonio Biá é o protagonista do filme Narradores de Javé, dirigido por Eliane Caffé. O corpus deste trabalho será constituído por três situações de enunciação, extraídas das falas do personagem do longa-metragem e, a partir delas, tecer algumas formulações pertinentes à luz do que enfatizamos na seção anterior.
O que chamamos aqui de discurso “intelectuário” de Antonio Biá nada mais é do que uma tentativa de enquadrar o conjunto de enunciações do protagonista, isto é, uma proposta de classificação do “linguajeiro discursivo” dessa personagem., visto, grosso modo, como um gênero.
Uma imersão na problemática das condições de produção desse discurso nos revela que estas se configuram relativamente adversas. O discurso de Biá, pouco comum pela carga de referências, surge num contexto sócio-espacial marcado pela pobreza nordestina, num povoado onde todos os moradores, excetuando- se as crianças, são semi- analfabetos. Amplificando esse contexto, diríamos que essa população parece viver esquecida num ponto remoto da bahia, sem governo presente, sem condições infra-estruturais básicas, alheia aos acontecimentos sociais, políticos, econômicos, históricos e culturais do próprio Estado, para não dizer do Brasil. Trata-se de uma gente alienada em termos de consciência político- social, que dá mostras de não enxergar muito além do que se passa naquele reduto de chão, onde as terras foram demarcadas oralmente, formando o que, na história deles, se chama de “divisa cantada”. A pobreza predomina em Javé e a única presença de uma “forma de poder” maior (um “aparelho” do Estado, talvez mais repressor do que ideológico ) é a chegada dos engenheiros que irão transformar aquelas terras em represa para suportar as águas que abastecem o Estado.
São tais as CP do discurso de Biá. É nesse cenário hostil à eloqüência e às letras que o ex- carteiro Biá interaje, chegando mesmo a se considerar parte integrante daquilo tudo:
“Se hoje isso aqui é um lugar miserável, de gente apocada e ignorante como eu ,como vocês tudinho!...Nós somos um povinho ignorante que não escreve nem o próprio nome, mas inventa historias de grandeza pra esquecer a vidinha rala! Sem futuro nenhum!...
Essa fala,contudo, também serve para expressar algo que em Javé se mostra patente, como já foi dito : paira na inconsciência coletiva daquele povo uma espécie de ideologia do conformismo, isto é, uma ideologia da pobreza vista como algo que existe para se orgulhar, algo positivo, como se percebe a partir do modo como eles contam suas histórias de “gente guerreira”.
Se por um lado Biá se considera ignorante como os seus, por outro lado se considera “intelectuário e alcoólatra”, um sujeito iluminado pelo domínio da escrita, mas não só a escrita, mas a escrita com um certo talento literário, artístico. Apesar de “intelectuário”, a quem foi conferida a missão de resgatar “nos termos científicos e verdadeiros” a grande história do Vale de Javé, Biá reconhece, ainda que só quando não havia mais jeito, incapaz de “parar a represa e o progresso”. De fato, ele não pára o progresso, mas consegue empreender, como se depreende das falas finais de Zaqueu, o relato das memória daquele povo e região. Quando parte para a primeira entrevista, desde então, expressa seu propósito:
“Eu vim aqui lhe ouvir e anotar o que for importante das suas lembranças javélicas, as históricas e as pré-históricas, pra gente por no livro ‘A Odisséia do Vale de Javé – 1ª parte’ “
Grifamos a última enunciação para nos atermos a ela, que fornece- nos pistas para percebermos a forma como o protagonista explora suas potencialidades discursivas. Biá, a todo o momento, recorre a um material que é caro à produção dos mitos, no dizer de um antropólogo (Rocha, 1985) : o personagem recorre a “sobras de outros discursos” ( o discurso dos cientistas, literatos, poetas, intelectuais em geral, políticos, o discurso da cultura de massas) e vai compondo, à maneira de um bricoleur discursivo, o seu próprio discurso de “ intelctuário” – eis a matéria prima da sua formação discursiva. A enunciação “A Odisséia do vale de Javé – 1ª parte”
Grifamos a última enunciação para nos atermos a ela, que fornece - nos pistas para percebermos a forma como o protagonista explora suas potencialidades discursivas. Biá, a todo o momento, recorre a um material que é caro à produção dos mitos, no dizer de um antropólogo (Rocha, 1985): o personagem recorre a “sobras de outros discursos” (o discurso dos cientistas, literatos, poetas, intelectuais em geral, dos políticos, enfim, o discurso da cultura de massas) e vai compondo, à maneira de um bricoleur discursivo, o seu próprio discurso de” intelectuário” – eis a matéria prima da sua formação discursiva.

“A Odisséia do vale de Javé – 1ª parte”

No que se refere à intertextualidade, a referencia ao legado literário dos gregos é bastante clara: Odisséia é o poema épico escrito por Homero, que narra as aventuras e desventuras de Ulisses e que se tornou sinônimo para se falar sobre narrativas de feitos heróicos. A enunciação acima nos remonta metonimicamente à obra grega. Enveredando no campo da dêixis discursiva aí instaurada, obtemos informações evidentes:
a) há um locutor discursivo, que é Biá;
b)este locutor se dirige a um destinatário discursivo, que no caso é o primeiro entrevistado por Biá, mas poderíamos dizer que é o povo de Javé;
c) a topografia é o povoado do Vale de Javé;
d)a cronografia se apresenta com o momento em que se vive o dilema de uma perda da historia local, devido à ação dos construtores da represa.
Acrescentemos aqui que aí também se configura uma dêixis fundadora, na medida em que encontramos nessa situação de enunciação (i) um locutor fundador – o poeta grego Homero – a quem se atribui a autoria da Odisséia original, (ii) uma cronografia fundadora – o contexto, ou as condições de produção que levaram Homero a escrever sua obra – e (iii) uma topografia fundadora, que está representada pela alusão à Grécia clássica. Mas esta é apenas uma entre várias situações. Vejamos outra enunciação, que acontece quando o protagonista explica como é o seu “método” de trabalho:
“Isto aqui é um trabalho de ciência, vocês não tão acostumados. Eu até entendo. Então, mais tarde eu volto pra ver marcas e provas. Porque é assim que procede a ciência. Assim não dá!”
Investido de certa autoridade que lhe fora conferida, como dissemos, por “sabença de ofício”, Antonio Biá se refugia necessariamente nesse discurso de autoridade, que é o cientifico. Dito de outra forma, Biá se defende a partir de uma dêixis fundadora que está assentada na idéia positivista do método científico, que, por sua vez, nos reporta ao século XIX e à filosofia positivista francesa. Ainda se tratando de dêixis fundadora, ou discurso fundador, encerraremos este breve trabalho destacando a enunciação abaixo, na qual também atua a interdiscursividade:
“O senhor ta confundindo hábeas corpus com Corpus Christi. O meu trabalho é de responsabilidade, é verdadeiro. E o mundo hoje não é mais como antigamente, no tempo do rascunho da Bíblia, onde bastava ter um homem ,um fecho de capim e um jumento e pronto, se tinha uma boa historia. Hoje não... Contar uma historia hoje é difícil. Eu quero pelo menos um ano de barba grátis! O senhor pense de novo, raciocine- se e traga uma proposta à altura do meu esforço...”
O destinatário discursivo desta enunciação é o barbeiro do povoado. Contudo, cronograficamente, temos uma situação de enunciação relevante, do ponto de vista interdiscursivo: o barbeiro havia proposto a Biá que escrevesse uma boa história que envolvesse o seu nome (ressaltando seu “heroísmo, é claro), tudo isso em troca de “uns seis meses” de barba gratuita, oferta que Biá de pronto se recusa, por achar pouca. Perpassa, assim, na formação ideológica do protagonista o tom característico de uma ideologia da troca de favores, também conhecida pelo nome de “toma lá dá cá”, prática tão corriqueira entre determinados representantes do governo, em qualquer esfera da república federativa. Ideologia que não é formada há pouco tempo, mas que já encontra vestígios no discurso fundador estabelecido pela carta de Pero Vaz de Caminha (que, ironicamente, também era escrivão!) , quando o escriba pede ao Rei de Portugal uma colocação para um aparentado seu. Percebe-se explicitamente um locutor fundador( Caminha) , uma topografia fundadora (o Brasil, recém “achado”) e uma cronografia fundadora, revelando enfim que o “lugar” de Caminha ao escrever a missiva é o lugar de um privilegiado, assim com Biá, investido de uma grande missão ao redigir um texto que terá importância histórica.

3. Considerações conclusivas.
Acreditamos que, com base nas três situações de enunciação expostas ao longo deste artigo, intentamos desvelar nuanças dêiticas, intertextuais e interdiscursivas que constituem três dos cernes da formação discursiva do personagem Antonio Biá. Este, com uma irreverente maneira de exprimir seu pensamento, fazendo uso de relações entre outros discursos e textos já canonizados pela História, construindo um campo vocabular digno de faze-lo personagem de Guimarães Rosa, associando palavras distintas para produzir na língua um enriquecimento semântico notável, enfim Biá constrói estratégias discursivas, que fornecem amplo material para estudos em Análise do Discurso.

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* Este artigo foi originalmente produzido para o curso de especialização em Estudos Linguísticos, na disciplina Análise do Discurso, no ano de 2006. Como abandonei o curso ao final do primeiro semestre, deixei ele como parte do meu acervo.

Título original: Estratégias dêiticas, intertextuiais e interdiscursivas presentes no discurso “intelectuário” de Antonio Biá, no filme “Narradores de Javé”


A epígrafe do texto era:

“ Todo discurso se estabelece na relação com um discurso anterior e aponta para outro” (Eni Orlandi, 2005).
Abstract
The article present intends to delimit some marks of dialogue between texts, dialogue between discourses and dêixis and founder in speak of the character Antonio Biá, of the film Narradorres de Javé (Narrative of Javé).

4. Referências bibliográficas

BRANDÃO, Helena N. Introdução à Análise do Discurso. 3ª edição. Campinas, SP: Editora Da UNICAMP, 2005.
MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso – diálogos e duelos. São Carlos : Clara Luz, 2004.
ORLANDI, Eni P. Analise do Discurso – Princípios e procedimentos. 6ª edição. Campinas, SP :Pontes, 1999.
ORLANDI, Eni P. A Linguagem e seu Funcionamento – as formas do discurso. São Paulo : Brasiliense, 1983.
ORLANDi, Eni P. Discurso Fundador. Campinas, SP : Pontes, 1993.