“Então, já não seremos crianças, jogados pelas ondas e levados para cá e para
lá por qualquer vento de doutrina, presos pela artimanha dos homens e pela
astúcia com que eles nos induzem ao erro” (Carta de Paulo aos Efésios, cap. 4, vers.
14, Bíblia Sagrada, edição pastoral da Paulus)
Outra noite um conhecido bispo neopentecostal” de uma igreja brasileira comentou João 4.24 em seu programa diário numa rede de rádio. Com a objetividade no sermão de sempre, que é sua marca, disse que Deus não é uma pessoa, nem uma mulher, mas é Espírito. Até aí tudo bem. Só que ele disse isso com um tom de quem disponibiliza para seu público uma grande revelação, chegando a dizer que “a gente não sabia disso” (leia - se nós, porque ele já sabia...). Depois explanou a sua interpretação da segunda parte do citado versículo. Discorreu sobre o texto bíblico com aquela mesma linha de raciocínio que faz questão de pouco modificar ao longo dos seus anos de ministério universal: com a eloqüência que lhe é peculiar, ratificou a mesmice dos conceitos que tem sobre fé, inteligência e razão na vida do cristão da teologia da prosperidade. A repercussão dessas mensagens em seu próprio ministério é algo notável, pois com certeza em poucas horas os pastores liderados vão repeti-las, praticamente com idênticas palavras, algo já mecanizado. Com um bispo e um aparelho de comunicação desses, para que fazer reunião de ministério, se toda a orquestra já está afinada a distância? O sistema de ensino via rádio e TV - na modalidade EAD - liderado pelo bispo funciona muito bem, obrigado.
Mas voltemos ao versículo de João, segundo o bispo. Ele disse que os cristãos precisam adorar a Deus em espírito, ou seja, adorá-Lo com e pela fé, mas também – aí sim! – adorá-Lo em verdade, isto é com a razão, usando a “fé inteligente”. Inferência imediata que podemos tirar dessa lição episcopal: todo crente que tem uma fé em Deus diversa da que o bispo prega é uma fé burra ou, no mínimo, ignorante. Por outras palavras, o crente que persevera no aprendizado da Palavra, entende que passar por provação - deserto/vale/dias maus - é algo inerente à sua vida na terra (“no mundo tereis aflições (...) tende bom animo...”), mas leva uma vida no altar, permanecendo firme nas promessas de Jesus, simplesmente tem uma fé ignorante. Não se pode, segundo ele, agir com a emoção ou o coração em matéria de fé, pois somente a fé racional e inteligente faz com que as “grandezas de Deus” sejam concretizadas na vida do cristão. Para ele, se nosso Deus é um Deus grandioso, dono do ouro e da prata, ninguém deve viver uma vida de pobreza, de miséria, porque isso não é justo. Quando cumprimos a nossa parte com Deus, Ele é obrigado a cumprir a Sua, nos dando uma vida com abundância, expressão muito cara a esse pregador. Um dos “cultos” em que mais se enfatiza essa visão é o da prosperidade (que, a depender da denominação, pode levar nomes como “nação dos 318”, “corrente da prosperidade”, “reunião com os empresários”, “corrente dos 70 apóstolos”, etc). Nesses cultos, a pessoa sai com pelo menos uma convicção: se é pobre, se está na miséria, se está endividado, etc. é porque está com a vida errada diante de Deus, não vem sendo fiel a Ele. Ademais, nota-se nos últimos anos, em cultos como esses, que o discurso do teólogo da prosperidade vem se metamorfoseando de tal forma, que chegamos a pensar que se encontra em processo acelerado de “sincretismo”, se é que se pode caracterizá-lo assim. Afinal, o que pensar de um discurso constituído basicamente pela incorporação de clichês filosóficos, científicos e empresariais ao campo sagrado das coisas espirituais? Talvez esse remanejamento discursivo tenha sido provocado pelo exacerbado interesse evangelistico voltado para o público potencialmente empresarial, que é a classe em que melhor se observa a materialização das “grandezas de Deus”, na acepção da teologia da prosperidade. O tipo de fé que certos pastores de grandes rebanhos defendem é uma fé de resultados. Mal comparando, seria mais ou menos isto: assim como as empresas trabalham com vistas à obtenção de balanços positivos, numa busca pelo equilíbrio entre o custo e o benefício para agradar aos investidores, na otimização de serviços, os adeptos da teologia da prosperidade trabalham em prol do sucesso material, alcançado graças a uma fé inteligente num Deus que tudo pode fazer na terra, no tocante à vida financeira. É um tipo de fé prática, eficiente, uma fé com padrão ISO 9000. Se fosse um programa de pós-graduação em fé inteligente, levaria nota máxima da CAPES. Todos os aparelhos de comunicação dessas igrejas engajadas nessa corrente atuam na quase perfeita harmonia para esses fins, que nem sempre têm os meios justificados.
Antes que me perguntem, não tenho absolutamente nada contra o referido bispo, até admiro muito o seu trabalho missionário, pois não se pode negar que muitas vidas foram e continuam sendo ganhas para Jesus ao longo de décadas de ministério. Fui praticamente criado assistindo aos cultos de igrejas desse tipo, já que alguns de meus familiares são membros delas, desde que tinha meus seis ou sete anos de idade. Foge da minha alçada e da minha competência dissuadir qualquer cristão de sua crença. Também sou cristão e tenho as minhas. Amparado no direito constitucional da liberdade de crença, de religião e de expressão, apenas tentei expor os fatos da maneira como os interpreto, da mesma forma como não só o bispo neopentecostal, mas qualquer pessoa que queira poderá também fazê-lo, tanto no que se refira aos textos bíblicos, quanto a qualquer outra enunciação, de qualquer natureza. Mas assim como o bispo defende a sua fé, precisava também defender a minha. E percebi que a minha não se encaixava no padrão doutrinário de fé formulado pelo teólogo para a sua igreja.
E você leitor, onde se encaixa a sua fé?